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A Semana de Arte Moderna aconteceu em São Paulo entre 13 e 17 de fevereiro de 1922, ano que marcou as festas do Centenário da Independência do Brasil realizadas pelo governo Epitácio Pessoa. A Semana e o Centenário eram eventos opostos: de um lado, uma celebração crítica e, do outro, uma efeméride patriótica e ufanista. Um pequeno grupo de jovens se notabilizou no Theatro Municipal de São Paulo e incluía figuras de proa que se tornariam centrais para os debates sobre arte e cultura nas décadas seguintes, bem representadas pelo chamado grupo dos cinco: Tarsila do Amaral, Anita Malfatti, Menotti del Picchia, Mário de Andrade e Oswald de Andrade.

 

Ligado não apenas ao campo da literatura, mas também à música e à escultura, por exemplo, esse grupo, formado após as duras críticas de Monteiro Lobato às inovações plásticas apresentadas na exposição de Anita Malfatti em 1917, se opunha ao passadismo e ao academicismo dominantes, constituindo, num projeto coletivo, a sensibilidade modernista que se desenhava para além dos trópicos. Foi nessa toada que artistas e intelectuais se voltaram para a crítica dos cânones, contra a chamada “arte pura” e a poesia metrificada, manifestando-se a favor da arte propriamente brasileira e incorporando os procedimentos e debates das vanguardas europeias. Podemos dizer que, de lá para cá, o evento se estabeleceu no nosso imaginário coletivo como o ponto de virada e renovação das artes, do pensamento sobre o Brasil e da busca de uma identidade brasileira.

 

O título da mostra Ecos de 1922 - Modernismo no Cinema Brasileiro poderia confundir o espectador ao dar a entender que há uma presença declarada e manifesta do cinema no modernismo dos anos 1920. No entanto, é importante frisar de início que o cinema enquanto expressão artística não fez parte da Semana. Aliás, não há indícios de que, até a Semana de 22, seus participantes – salvo Mário de Andrade e Menotti del Picchia – tivessem interesse especial pelo cinema contemporâneo produzido no Brasil. Este padrão se repetiria ainda na chamada ‘segunda geração modernista’, agrupada na revista Clima, entre 1941 e 1944. Foi somente alguns anos depois que esses pensadores acolheram com simpatia os filmes produzidos pela Vera Cruz, ainda que as produções não guardassem vínculos diretos com o modernismo.

 

Mais do que o legado direto deixado pelos intelectuais e artistas ligados à Semana, a mostra Ecos de 1922 pretende sondar as mínimas e as máximas reverberações da atitude modernista no cinema – este que talvez seja o maior símbolo da modernidade. Até o surgimento do movimento do Cinema Novo, houve apenas algumas manifestações isoladas do tema da modernidade (sem associação com o Modernismo), em filmes como São Paulo, a symphonia da metrópole, de 1929, e Limite, exibido pela primeira vez em 1931. Talvez o maior impasse de uma mostra de cinema que investiga esses ecos seja justamente a consciência de que não houve modernismo per se no cinema. Não há um cinema contemporâneo a 1922 feito nos moldes modernistas ou que se reivindique como tal. Mas o que a princípio pareceria o calcanhar de Aquiles do trabalho da curadoria, talvez seja justamente seu maior trunfo: a possibilidade de abordar o tema de forma múltipla. Sem a pretensão de esgotar o tema, Ecos de 1922 lança questionamentos, abre frentes, dispara provocações. Neste recorte, o modernismo se torna chave de leitura da história do cinema brasileiro, pois se não tivemos realizadores diretamente ligados à vanguarda de 1922, observamos claramente os reflexos do movimento e de seus autores na produção cinematográfica nacional.

 

Não só a Semana de Arte ocorrida em São Paulo, como também a década de 1920 como um todo trouxeram um anseio pela modernidade. É preciso, portanto, enfatizar a pluralidade de modernismos de que falamos. É a partir dessa pluralidade que estamos pensando os ecos de 1922 no cinema nacional. Assistimos a modernismos pipocando fora da metrópole paulistana. Para citar apenas alguns nomes e movimentos mais conhecidos, Lima Barreto, Pixinguinha e os Oito Batutas, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, o Movimento Verde, Vicente do Rêgo Monteiro, Cícero Dias, são exemplos de produções fundamentais, exemplos da pluralidade de modernismos vistos no Rio de Janeiro, Minas Gerais, Pernambuco. E, apesar de termos a Semana de Arte Moderna e os anos 20 como marco inicial e norteador da mostra, avançar diante das expressões artísticas e cinematográficas das décadas seguintes nos ajuda a entender de que maneira essas outras gerações, em outras linguagens, fizeram suas leituras, genealogias e apropriações do modernismo. Nossa proposta é pensar não apenas como o modernismo influenciou e, de certo modo, avalizou a produção artística brasileira no século XX, mas também como os cineastas criaram, ao seu modo, seu próprio mito do modernismo e se inseriram nele.

 

Em meio a longas, médias e curtas-metragens, num vasto recorte geográfico, temporal e conceitual, que vai de 1922 a 2021, de Roraima ao Paraná, os filmes escolhidos são atravessados pelo pensamento de intelectuais paulistas, como Oswald de Andrade e Mário de Andrade, mas também pelo de intelectuais e artistas indígenas contemporâneos, como Jaider Esbell e Denilson Baniwa.

 

Nesta mostra, os ecos cinematográficos dos modernismos são encontrados em diversas adaptações literárias e em cinebiografias de artistas modernistas, mas, acima de tudo, em produções que revelam uma ligação conceitual e uma vontade de experimentar novas formas, de romper com a tradição conservadora e colonial, de achar outras maneiras de pensar o Brasil. Voltar a 1922 em 2022 permite esmiuçar as linhas de força que marcaram um determinado período e perceber que sua relação com o presente não cessou, porque ali, nestes filmes, existe uma fissura em relação ao próprio tempo. Rever os filmes apresentados nesta mostra nos permite acessar os sintomas contidos nessas imagens do passado e dar a elas uma nova inteligibilidade, perturbando nosso presente e projetando novos futuros.

 

Clássicos indiscutíveis do cinema brasileiro, como Limite (Mário Peixoto, 1931), Terra em transe (Glauber Rocha, 1967), Como era gostoso meu francês (Nelson Pereira dos Santos, 1971), Iracema, uma transa amazônica (Jorge Bodanzky e Orlando Senna, 1974), Ladrões de cinema (Fernando Coni Campos, 1977), Mato eles? (Sergio Bianchi, 1983) e Tudo é Brasil (Rogério Sganzerla, 1997), ou ainda os curtas de Humberto Mauro serão tangenciados por outros filmes menos conhecidos do grande público, como Orgia ou O homem que deu cria (João Silvério Trevisan,1970), Mangue-bangue, (Neville de Almeida, 1971), A$suntina das Amérikas (Luiz Rosemberg, 1976) e Um filme 100% brazileiro (José Sette, 1985). É também o caso dos curtas O ataque das araras (Jairo Ferreira, 1969), Bárbaro e nosso – Imagens para Oswald de Andrade (Márcio Souza, 1969), Herói póstumo da província (Rudá de Andrade, 1973), Alma no olho (Zózimo Bulbul, 1974), Há terra! (Ana Vaz, 2016) e Apiyemiyekî? (Ana Vaz, 2019).

 

Apresentamos, ainda, uma seleção de filmes “oswaldianos” de Rogério Sganzerla e de Júlio Bressane, como Sem essa, Aranha (Rogério Sganzerla, 1978), Tabu (Júlio Bressane, 1982), Miramar (Júlio Bressane, 1997) e Tudo é Brasil (Rogério Sganzerla, 1997), além dos curtas Perigo Negro (Rogério Sganzerla,1992), Quem seria o feliz conviva de Isadora Duncan? (Júlio Bressane,1992) e Uma noite com Oswald (Inácio Zatz e Ricardo Dias, 1992).

 

Figura central na relação entre o modernismo e o cinema brasileiro, Joaquim Pedro de Andrade também terá destaque especial na mostra. Além da exibição dos longas Macunaíma (1969) e O homem do pau-brasil (1980) e dos curtas O mestre de Apipucos (1959) e O poeta do Castelo (1959) – filmes dedicados à obra e às ideias de Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Gilberto Freyre e Manuel Bandeira, respectivamente – teremos, ainda, a exibição do média-metragem O Aleijadinho (1978) e um debate sobre sua obra e sua relação familiar e afetiva com os modernistas.

 

Por fim, contaremos com uma seleção de filmes contemporâneos, entre curtas, médias e longas, documentários e ficção, que abordam temáticas anunciadas pela produção modernista a partir de outros vieses: indígena, negro e periférico. Branco sai, preto fica (Adirley Queirós, 2012), Grin (Isael Maxakali Rolney Freitas e Sueli Maxakali, 2016), Travessia (Safira Moreira, 2017), Por onde anda Makunaíma? (Rodrigo Séllos, 2020) e Nũhũ Yãg Mũ Yõg Hãm: essa terra é nossa! (Carolina Canguçu, Isael Maxakali, Roberto Romero e Sueli Maxakali, 2020) serão acompanhados por uma seleção de “filmes de Internet”, disponíveis nas mídias sociais e no site do evento.

 

A identidade visual da mostra é toda baseada na obra Ficções coloniais (ou finjam que não estou aqui), de Denilson Baniwa. Concebida em 2021, essa série de colagens pode ser vista em sua integralidade nas páginas deste catálogo, acompanhada também de um texto do autor. Com esta obra, Baniwa ensaia um direito de resposta ao imaginário indígena forjado por fotógrafos e cineastas brancos ao longo da história. Por meio da colagem, Denilson também forja sua visão de Brasil através do encontro dos clássicos do cinema hollywoodiano com a fotografia etnográfica.

 

Em nosso livro-catálogo, procuramos aproximar textos heterogêneos ao redor da Semana de 22 e de suas reverberações nos séculos XX e XXI. A publicação reúne, sem distinção qualitativa ou editorial, textos de época com outros mais contemporâneos acerca dos diversos desdobramentos do modernismo, e conta com textos inéditos de Ruy Gardnier, Lorraine Mendes, Marília Rothier e Aline Leal, Tainá Cavalieri, Mateus Sanches e Juliano Gomes; com textos reeditados de Jaider Esbell, Denilson Baniwa, Paulo Antonio Paranaguá, Pedro Duarte, Julierme Morais, Glauber Rocha e Paulo Emílio Salles Gomes; com os Manifestos Pau-Brasil e Antropófago, de Oswald de Andrade; com a reunião dos artigos de jornal de 1942 que formaram a célebre conferência “O movimento modernista”, de Mário de Andrade; com uma seleção de colagens vindas de revistas modernistas, como a Klaxon e a de Antropofagia; além de poemas de Alexia Carpilovsky, Lucas van Hombeeck, Maria Clara Parente e de um ensaio visual de Rachel Pires.

O catálogo se divide em três partes. A fim de garantir a ambientação do leitor na discussão sobre o modernismo brasileiro, a primeira parte do catálogo traz textos que pensam diretamente questões ligadas aos personagens ligados à Semana, a suas obras e seus contextos. A segunda parte conta com releituras críticas e um esforço de atualizar o debate dos anos 20 – e das décadas seguintes – nos dias de hoje, pensando seus desdobramentos contemporâneos. Nela, tivemos a preocupação de unir autores iniciantes e consagrados, e de incluir textos de caráter mais experimental ou de intervenção. Tal diversidade de linguagens ecoa as experimentações modernistas, vistas, em especial, nas publicações Klaxon e na Revista de Antropofagia. Já a terceira parte trata do ponto de culminância da mostra e da presente publicação, o centro gravitacional da nossa proposta curatorial: a relação entre o cinema e o modernismo. Quer dizer, pensar os ecos desse modernismo historicamente localizado no começo do século XX nas obras de Joaquim Pedro de Andrade, Glauber Rocha, Rogério Sganzerla e Júlio Bressane, por exemplo, mas também no cinema contemporâneo, indígena, negro e periférico.

Em 1969, tratando das reverberações do modernismo no teatro da época (após a montagem de O Rei da vela por José Celso Martinez Corrêa), Glauber Rocha afirma com veemência que “a antropofagia e seu desenvolvimento são a coisa mais importante hoje na cultura brasileira”. Indo um pouco além, podemos dizer que, dentre os brasileiros, o sentimento de pertencimento cultural floresceu junto à nossa cinematografia que, não raro, devora as mais diversas referências e influências. Mais de meio século depois dessa fala de Glauber e exatos 100 anos após a Semana de Arte Moderna, será que a

antropofagia e os demais ecos do movimento modernista ainda são potentes para se pensar as culturas brasileiras? Porque entendemos essa questão muito mais como uma provocação do que como um ultimato, esperamos que os filmes e textos aqui reunidos possibilitem ver, rever, pensar e repensar a história da cultura e do cinema brasileiro.

Registro dos debates online

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QUANDO?

CCBB SP - 09/02/2022 a 07/03/2022
CCBB RJ - 10/03/2022 a 11/04/2022 

CCBB DF - 19/04/2022 a 08/05/2022 

ONDE?

Centro Cultural do Banco do Brasil - São Paulo
R. Álvares Penteado, 112, Centro
Centro Cultural do Banco do Brasil - Rio de Janeiro

Avenida Almirante Barroso, 25, Centro, RJ
Centro Cultural do Banco do Brasil - Brasília
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